A Agilidade, a busca pelo modo 'ser' nas relações, e a força da união do soft skills com o hard skills
Se eu sou o que eu tenho, quem serei eu quando eu perder o que tenho? Ninguém além de um testemunho derrotado, desanimado e patético de um modo de vida errado.
Erich Fromm
Ano passado, durante a primeira temporada do Wise & Effective, o programa de aprendizado continuado do Software Zen, tivemos a feliz oportunidade de nos deparar com o livro Ter ou Ser do psicanalista, filósofo e sociólogo alemão Erich Fromm. Da leitura desse livro, e da aproximação da formação de Soft Skills para líderes Ágeis do Software Zen, me surgiu a motivação para escrever esse artigo.
Fromm argumenta que o ser humano se divide, ao longo da vida, em dois modos fundamentais de existência: o modo ser e o modo ter. Tanto 'ser' quanto 'ter' se manifestam no âmbito das relações. O modo 'ser' no sentido da experiência, e o 'ter' no sentido da posse, ou poder.
"Por ser ou ter não me refiro a certas qualidades distintas de um sujeito em declarações como: ‘eu tenho um carro’, ‘eu sou branco’ ou ‘eu sou feliz’. Refiro-me a dois modos fundamentais de existência, a duas diferentes espécies de orientação para com o eu e o mundo, a duas diferentes espécies de estrutura de caráter cujas respectivas predominâncias determinam a totalidade do pensar, sentir e agir de uma pessoa." E. Fromm
O modo “ter” assume um tipo de relação baseada em propriedade e no quão a sua posse nos serve. Temos, por exemplo, um computador, e por isso, ele faz o que queremos ou precisamos que ele faça. Quando dizemos que “temos” um funcionário, isso implica também que ele faça o que quisermos ou o que precisarmos que ele faça. Desde que os seus pedidos estejam circunscritos em um âmbito legal, ético e profissional, o funcionário está a sua disposição para o que você precisa.
Assim, toda relação no modo “ter” é instrumental, porque o que une as duas partes é fundamentalmente o “uso” do outro. O funcionário “usa” a empresa para ganhar dinheiro, e a empresa “usa” o funcionário para desempenhar um trabalho. Parece ruim, mas não necessariamente. É uma relação legítima, e, em muitas situações, é o melhor que podemos dar, ou receber em uma relação profissional nos tempos atuais. Entretanto, é importante saber qual é o jogo que estamos jogando e quais são as suas decorrências. É no jogo do 'ter' por exemplo que se apresenta o medo da perda, como aponta Stephen Batchelor:
'Ter' sempre pressupõe um dualismo nitidamente definido entre sujeito e objeto. O sujeito busca, assim, seu bem-estar, bem como seu sentido de significado e propósito, na preservação e aquisição de objetos dos quais está necessariamente isolado. A máxima se torna: “Eu sou o que tenho” (Fromm). Como resultado, qualquer sentimento de realização será necessariamente ilusório, porque não há nada que se possa ter que também não venha acompanhado do medo de se perder.
Batchelor, Stephen: Alone with Others
É interessante notar que as pessoas que apresentam o maior medo de perder o emprego são aquelas que 'tem' um emprego. Por outro lado, as pessoas que 'são', as que cuidadosamente unem o que são com o que fazem profissionalmente, acabam apresentando muito mais segurança, autoconfiança e assertividade em suas escolhas profissionais. Elas costumam conduzir o jogo profissional, ao invés de serem empurradas por ele e pelas circunstâncias que se apresentam. Elas costumam ter o que no âmbito dos soft skills chamamos de 'protagonismo'.
Daí a importância do tema 'autoconhecimento'
A falta de uma conceitualização mais sofisticada da ideia de autoconhecimento pode contribuir de forma significativa para que nos percamos no modo 'ter'. Na primeira temporada do Wise & Effective, eu descobri que autoconhecimento é um processo, não um estado binário do tipo conheço-me ou não conheço-me.
É aprender sobre si mesmo a cada dia e, ao mesmo tempo, nos relacionarmos com nós mesmos na base do 'ser'. Na medida em que a maioria das nossas decisões começam a se amparar no que podemos 'ter' a partir delas, nos distanciamos do modo 'ser', e, ao fazer isso, nos distanciamos de nós mesmos.
Assim, a pergunta mais sofisticada que você pode responder para si mesmo atualmente não é nenhuma pergunta técnica, mas uma pergunta ontológica:
— O que significa ser 'eu' nessa situação?
Autoconhecimento é um processo que gera uma capacidade, a capacidade de responder a essa pergunta nas diversas situações que vivemos, pessoais e profissionais.
Na formação Soft Skills para Líderes Ágeis do Software Zen, a Susanne Andrade enumera os problemas associados à falta de Soft Skills: "Sinto que estou trabalhando sem motivação, somente por um salário" ou "A minha performance não está tão boa" ou "Desejo mudar, alavancar a minha carreira, mas não sei por onde começar" ou "Fui demitido" ou "Fui promovido".
Repare como todos esses problemas sugerem falta de autoconhecimento. Este por sua vez, se manifesta em termos de comportamento como falta de protagonismo.
Por exemplo, pegue o último problema: "Fui promovido". Talvez você dissesse: — Como assim 'fui promovido' é um problema? Ora, começamos pelo uso da voz passiva na oração. Você foi objeto de uma promoção que parecia não estar buscando, instrumento do outro (modo 'ter'). Não fazia parte do seu 'plano maior' (talvez porque você até nem tivesse um plano maior).
Veja como é diferente de "Conquistei uma promoção". Nessa forma de dizer está implícito o protagonismo, a intencionalidade, o 'puxar' a realidade para que ela se compatibilize com o que você é. Nessa forma de dizer, está implícito o modo 'ser'.
O modo 'ser' e a imposição dos seus desejos sobre outros
É muito comum que algumas formas de liderança ou de apoio, como por exemplo agile coaches, consultores, etc, além de outros profissionais cujo objetivo é ajudar times e equipes, se ressintam da ausência de poder que emerge das novas relações na sociedade pós-industrial contemporânea. Em outras palavras, é comum que eles se ressintam da sua incapacidade de conseguirem que os times façam o que eles querem. Por não estarem hierarquicamente posicionados, o modo 'ter' não está disponível, e isso os deixa vulneráveis e inseguros quanto a sua capacidade de garantir o resultado do seu trabalho.
De modo semelhante, esses profissionais muitas vezes se sentem mal por terem que 'obrigar' ou 'impor' que o time aja de certa maneira, ou execute determinadas práticas sem a tão necessária motivação íntrinseca. O problema é que a única forma de “obrigar” alguém a fazer algo é no modo “ter”, quando a interação se configura nas linhas de uma relação de poder. Atualmente é preciso reconfigurar as relações, e isso é difícil. O modo 'ter' precisa ser ressignificado, reorientado para o objeto externo apropriado. É por isso que não queremos mais "ter" um time para fazer o que eu peço, mas "ter" um resultado para fazer o que eu preciso fazer.
Ao mesmo tempo, a sociedade pós-industrial está migrando gradativamente as relações para o modo “ser”. É isso que na verdade se quer dizer quando falamos em Agilidade como tendo foco nas pessoas. Queremos “ser” um time, “estar” juntos, queremos nos “tornarmos” nós mesmos. Queremos a união pela vontade, pela motivação, pelo desejo do propósito. Então, como gestores, agile coaches, líderes queremos “ser” parte do time, facilitar a mudança, tirar as barreiras do caminho, progredir como um todo coeso. No modo “ser”, a autenticidade do outro precisa ser levada em conta, e precisamos considerar o querer do outro, mesmo que este seja contra o nosso próprio.
Mas o que fazer então quando as pessoas não querem o que a gente quer? A resposta é: primeiro entender. Qual é a razão? Não é uma questão de quem está certo/quem está errado, mas de o que não estamos considerando na avaliação da situação. Sou eu que não estou conseguindo explicar, ou são as pessoas que não conseguem entender? O que está oculto na relação que não está sendo dito? Segundo, conciliar. O que é possível experimentar? Como a gente pode se aproximar mais? dividir riscos, compartilhar os resultados. Em último caso, pode ser que a descoberta seja a de que, no modo ‘ser’, você não combine com a pessoa ou as pessoas que você está interagindo. Talvez seja o momento de buscar outras relações, com diferentes pessoas.
É claro que, no final, sempre teremos o modo ‘ter’ para instrumentalizar a relação e obtermos o que queremos. De novo, não é que o modo “ter” não seja legítimo, ou seja errado, ou que seja eticamente ruim, ou até ineficiente, ou que nunca deva ser usado. É apenas um modo existencial.
O importante é ter consciência do ’em que modo estamos’ nas nossas relações, evitando o que o Erich Fromm vai conceitualizar como ‘confusão de modo’. Entramos em confusão de modo quando agimos no modo ‘ter’ esperando resultados que impactem o nosso modo ‘ser’. É na confusão de modo, por exemplo, que uma pessoa busca ‘ter’ um carro (ou outro objeto qualquer) esperando ‘ser’ mais feliz. Ao obrigar um time a fazer algo, eu posso contar com o resultado dessa ação (terei algo), mas não posso esperar que o time ‘seja’ melhor ou ‘se torne’ mais capaz, pois esses últimos atributos são obtidos via interações no modo ‘ser’.
Unindo a força do Soft Skills com o Hard Skills
Recentemente, na segunda temporada do Wise & Effective, eu trouxe a ideia para o nosso grupo de estudos sobre como as práticas soft skills e hard skills se manifestam hoje a partir de tendências teleológicas, fenômeno apontado por Russel Ackoff em termos de teleologia subjetiva e teleologia objetiva.
A teleologia é a explicação dos fenômenos em termos do propósito para os quais eles servem ao invés da derivação de suas causas, e é uma das bases para o pensamento sistêmico. Sem entrar muito nos detalhes (você pode conhecê-los se quiser entrando no We), a coisa se dá mais ou menos dessa maneira:
Se você é um observador sistêmico, perceberá a integração dos dois modos existenciais na percepção do foco de atenção e da mudança na dinâmica epistemológica. Na teleologia subjetiva, manifestada em termos de soft skills, o foco de atenção é na experiência das pessoas. Na teleologia objetiva, associada mais a hard skills, o foco é no seu comportamento.
No modelo teleológico objetivo, onde o hard skills domina, o olhar é mais voltado para o sistema que o nosso subsistema serve, ou seja, como atingimos o propósito daqueles a qual servimos: nossos clientes, o mercado, a sociedade ou a nossa empresa como um todo. Nesse modelo teleológico, queremos 'ter' resultados. Métricas tangíveis de atingimento de propósito são importantes. O tangível é importante. Impacto externo é importante. A saúde da relação com outros sistemas externos da qual você depende é importante. Nesse modelo, as ações são baseadas nas observações relacionadas ao comportamento dos agentes sistêmicos.
Já no modelo teleológico subjetivo, onde o soft skills domina, o olhar é mais interno, para o sistema como um 'ser' auto-poiético — aquele que constrói a si mesmo. Nesse âmbito, o trabalho é muito mais voltado para o propósito de quem serve: a equipe, as pessoas e aqueles com os quais nos relacionamos. Nesse modelo teleológico, queremos 'ser' alguém. Propósito pessoal é importante. A qualidade das interrelações pessoais é importante. A motivação das pessoas é importante. Impacto interno é importante. A relação dos agentes do sistema com o próprio sistema da qual eles dependem é importante. Nesse modelo, as ações são baseadas nas observações relacionadas a experiência dos agentes sistêmicos.
Sem a teleologia subjetiva, e seus soft skills, não há energia interna (energia auto-poiética) para produzir o comportamento que a teleologia objetiva, e seus hard skills, se apropria para orientar os seus resultados. Por outro lado, o foco na subjetividade obtido via soft skills é inócuo sem a objetividade e concretude obtidas via hard skills. Precisamos dos dois modelos, integrados.
O problema é que há uma componente de personalidade muito forte que nos atrai com muito mais força para um lado e para o outro, e isso nos confunde, nos leva a julgamentos sobre o 'outro lado', ou nos leva a desconsiderar forças e fraquezas em ambos os espaços teleológicos. Nos coloca novamente em estado de confusão de modo.
Conclusão: saindo da confusão de modo
Como sempre o desafio começa na compreensão.
Entendendo as coisas e o seu lugar, saímos da confusão de modo. Integramos o 'ser' e o 'ter' aos nossos desafios técnicos e existenciais e, assim, vivemos melhor conosco mesmos e com os outros.
É na ausência da confusão de modo que podemos 'ser' mais humanos e 'ter' melhores resultados.